terça-feira, 1 de julho de 2014

Fisico ou Abstrato - Final


(google)

Eu cumpri com minha parte do plano!
Enderecei uma carta póstuma a Felipe lhe contando tudo. Agora para todos eles eu estava morta. Mas morri não sem antes cumprir o que havia prometido.
  Eu estava lá quando Felipe e Ângela se casaram. Estava lá também quando Mariana recebeu alta do hospital. E da primeira fila pude ver minha doce e feliz Catarina recebendo seu diploma no ensino médio.
Meu débito estava pago e assim o estranho noturno se foi para sempre e eu também.

Hoje, trinta anos depois, eu sou uma quase senhora e vivo sozinha com Peter, o meu gato.
Das janelas do meu quarto eu fico sempre a vasculhar o mundo lá fora. Um nascer do sol, um findar do dia.
Me recolhi em mim mesma, e nunca mais voltei a vê-los.

...

Marcelaaa, Marcela! Vem cá. Eu preciso lhe mostrar um filme.
 Acordei de impeto, estava tendo um pesadelo! Logo em seguida, já acordada ouvi um miado alto, agudo e que logo foi abafado. Meu gato!
Desci as escadas e o encontrei ao pé do sofá. Estava petrificado. Estava morto!

Sentada em uma das mesas do café Royale, hoje tão velho e cheio de histórias quanto eu, concluo que sinto falta e sinto tristeza. Fui uma tola.
Mas a vida se encarregou de cuidar de mim, de me condenar da maneira certa, me deixando aqui, morrendo sozinha.

- Não Marcela, à vida não lhe fez mal algum. Foi você quem fez!
- Eu conhecia aquela voz. Os pelos do meu braço e pescoço estava eriçados,  meus olhos começaram a lacrimejar. Ele havia voltado! Marcelo estava ali! Olhei em desespero para todos os lados e me levantei. Andei pelo quarteirão inteiro mas não o encontrei.
Parei em uma viela qualquer, - estava chorando, estava perdida.
- CADÊ VOCÊ SEU MALDITO? APAREÇA!!! VAMOS MARCELO! ONDE VOCÊ TEM SE ESCONDIDO?
-Eu estou aqui Marcela! - Minha mão direita começou a se mexer involuntariamente na direção da minha cabeça. - eu não conseguia controlar. - Estou aqui Marcela, estou aqui! - Agora eu estava dando tampas em minha própria cabeça - estou aqui sua puta, estou aqui sua mentirosa, sua maldita, pilantra, filha da puta.
- Eu estou aqui Marcela! Estou em você! Eu nunca fui embora. Nunca fui outro. - Eu sou você Marcela, sou a tua consciência pesada e cheia de dor e medo. Justo não é?
- Agora Marcela, vamos para ultima parte do nosso plano. Volte para o café Royale, o jornal das seis já vai começar.


"Boa noite! Na manchete de hoje a pergunta que não quer calar!
Porque uma madrasta mataria de maneira tão brutal sua entiada? E o pior! Por que amarraria o pai da criança de forma que este fosse forçado a assistir toda a cena? Ciumes? Vingança? Ódio?
Uma família cercada pelo sangue. Há menos de um mês o mesmo pai perdera sua filha mais velha, vitima do HIV. A jovem médica Mariana Muniz foi contaminada em uma transfusão de sangue indevida.
Vamos conversar com a psiquiatra, doutora Helena Veiga para entender melhor o caso. Não saia dai".

Eu era nada. Estava em prantos e ao meu redor todos me olhavam. Vomitei na mesa  e gritei, gritei para todos ouvirem. Eu era um trapo. Um monte de lixo. Uma gota de urina na latrina do mundo.

-Você entende agora? Entende Marcela? Você não é dona do mundo! Você não é dona da vida das outras pessoas! Por duas vezes você brincou com a vida deles. Você errou e quis consertar, só que Marcela, consertar a vida dos outros? Quem é você pra fazer isso? As pessoas não são bonecos! Os outros também são universos complexos e cheios de questões.
Agora levanta, vamos atravessar a rua porque tá quase na hora. Anda! Vamos embora. Vamos morrer. Vem sua velha puta, o mundo tá te expulsando, ta te cuspindo pra fora, te mandando embora. Vamos Marcela, porque no mundo do fisico ou abstrato você já não é mais nada.
Vamos morrer.

Eu levantei e corri, corri pra a avenida e pude ver o caminhão. Fechei os olhos e corri ainda mais rápido, corri na direção da morte e foi assim que morri, de olhos fechados,. Porque senti vergonha até mesmo da morte.

Um comentário:

  1. Maravilhosa crônica, ela é cheia de suspense e drama,a leitura te prende de um modo que a cada linha escrita a vontade de ler se torna mais forte.
    A voz da consciência é aterradora, você pode mentir para todo mundo, mas nunca irá mentir e enganar a si mesmo.
    Parabéns o texto é magnífico.

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