sábado, 4 de outubro de 2014

A fronteira do Ser




O rapaz caminhava sobre o muro, o divisor do ocidente e oriente. Pensava sobre qual dos lados seria melhor para morrer. Teria ainda forças para decidir sobre qual lado tombar após a bala atingir seu peito? Faria realmente alguma diferença morrer a esquerda ou à direita? - Engraçado, pensou ele. Até mesmo na antevéspera da hora da morte o ser humano podia ser confrontado.  Antes do descanso eterno uma escolha corriqueira para findar seus dias na terra.
Para dissipar o tormento dos últimos instantes ele decidiu caminhar até outrora e reviver as escolhas que o levaram até ali. A primeira vez em que defendeu sua retórica e foi a fundo com suas convicções acabou sendo expulso de casa, mas isso pouco importava, afinal de contas, sairia de casa de qualquer modo, pois tinha se alistado para ir à guerra, lutaria como colaborador das forças anti governo e assim o fez aos vinte e dois anos. Alguns anos antes, quando entrou na faculdade, lembra-se da noite em que teve o quarto queimado após defender o direito dos afrodescendentes, bixas e mulheres em seu primeiro artigo para a aula de literatura moderna. Mesmo agora, depois de formado, não conseguia entender como uma simples defesa do outro podia gerar tanto ódio. O que queriam afinal, que não houvessem contra pontos? Que não existisse uma segunda, terceira ou quarta opinião? Mas hoje nada disso importa, ele vai morrer em alguns instantes. Vai morrer porque defendeu suas convicções, vai morrer porque tomou partido. - Droga! - pensou em voz alta. Maldita ideologia existencialista, maldita preferência, maldito gosto.
- Olá Rupert, você é Judeu? Você é cristão? Muçulmano? Homossexual? Negro? Poliglota? Afegão?
Porra de divisão socioeconômica e cultural. Drama, romance, comédia, sá porra toda é uma sucessão de escolhas forçadas. Nos estereotipamos o tempo todo. Nos dividimos, nos separamos. Desde a primeira infância aprendemos a separar, a dividir: rosa para as meninas, azul para os meninos, branco é paz, preto é guerra, vermelho é sangue.
Meninos não podem dar beijo no rosto uns dos outros, e meninas devem brincar de boneca, e não jogar futebol.
O rapaz voltou ao muro quando ouviu tiros ao longe. Estavam perto, seus carrascos estavam chegando, mas ele não iria correr, fugir ou se esconder. Já estava decidido, ficaria ali mesmo onde estava e esperaria por eles, não ia fugir porque concluiu que no mundo todo nenhum lugar lhe despertava mais a atenção, não importava onde fosse, porque tudo e todos não passavam de réplicas menos ou mais piores. Todo lugar na terra onde possa existir gente humana é uma bomba preste a explodir, e sendo assim, que ele se deixasse explodir ali mesmo, sem maiores sacrifícios. Era só esperar mais um pouquinho.
- Com leite ou puro senhor? Senhor?!
Era um domingo de manhã, um domingo gelado e o homem estava divagando lá pelas terras do ártico.
- Perdão senhorita. Eu quero puro e sem açúcar, por favor.
- Claro, é para já.
- Obrigado.
Escolhas, escolhas, escolhas. Eu não escolho nada. Mas até isso é uma escolha. Ficar a margem, ao centro, isso também é escolher.
O rapaz se lembrou do Marcus, um professor socialista que tivera no ginásio. O cara tava sempre falando das escolhas que tomamos ao longo da vida. A lista é enorme: comunista, capitalista, esquerda, direita, centro esquerda, alternativo, passivo, ativo, pró-governo, cabelo longo ou curto, careca talvez. Mas o que o levou realmente a pensar no Marcus foi porque o seu professor era uma cara loucão, um anarquista, um sem partido algum na vida e vivia dizendo pros alunos que ser alguém nesse mundo é o primeiro passo para não ser ninguém. Isso porque, segundo ele, tudo que achamos que podemos ser é na verdade uma concepção anterior a nossa ideia de ser, portanto, não escolhemos porra nenhuma, apenas optamos por um alguém já pronto e, sendo assim, o Marcus se autodenominava como senhor ninguém. - Eu sou nada, dizia ele.
Mas e eu, pensou o rapaz, - o que sou? - Quem sou?
 O que ele é o levou a não ser mais nada. Estava prestes a morrer exatamente porque decidiu ser alguém, decidiu ter opinião formada, e o pior, ele decidiu expressar e disseminar suas opiniões e concepções a respeito do mundo. O garoto em cima do muro na fronteira entre oriente e ocidente é só um garoto, comum. Ele tem vinte e três anos e se formou em literatura na universidade de Israel. Seu nome é Nadim, ele morava do outro lado da fronteira, fora do estado de Israel. Nadim sempre defendeu as minorias, sempre foi amigo dos desertores, dos negros, das bixas. Ele sempre apoiou a contra cultura e sempre foi anti governo. Nadim talvez tenha nascido no pais errado, na época errada, ou não. O fato é que Nadim jurou nunca negar quem é, o que é e no que acredita. E é por isso que Nadim está sobre o muro, é por isso que ele está na fronteira do ocidente e oriente, porque ambos o rejeitam, um lado fecha os olhos e finge que não o vê, o outro lado o vê tão bem que se sente incomodado e o quer expulsar, e assim Nadim ficou sem terra, sem lar, sem norte. Na fronteira do mundo ele decidiu se deixar cair, ou melhor, ele decidiu não mais correr. Talvez ali fosse como na área de embarque e desembarque internacional de um aeroporto, talvez ali fosse a terra de todos e de ninguém. Nadim decidiu ser alguém e elevar o seu ser até a morte.
Ali em cima do muro aquele rapaz, aquele homem, aquele ser humano estava prestes a cruzar a fronteira do ser. Uma vez não renegando ser quem é, uma vez morrendo afirmando e defendendo ser quem ele é o garoto imortalizaria suas convicções. Na fronteira entre ser ou não ser, Nadim escolher SER, decidiu caminhar mesmo que sozinho, na infinita companhia de sua própria crença.
Apesar do destino maldito que o aguardava dentre em breve, Nadim se sentia um homem de sorte, pois tinha ali a liberdade e a sabedoria em poder ver no mundo milhares de alternativas de vida e de pontos de vista. Não culpava os seus carrascos, não os queria mal, pois sabia que diferente dele, aqueles pobres homens estavam corrompidos, a liberdade de ser os havia sido roubada, sequestrada e destruída. Como boa parte das pessoas deste mundo, aqueles homens que marchavam para matar Nadim não eram mais os donos de si mesmo. Eram desde muito tempo escravos do pensamento de outros homens, homens esses que talvez também não fossem donos de deles mesmos. Nadim se declarava um homem livre, a única coisa que lhe estava sendo roubada era a possibilidade de ser ele mesmo por mais tempo. - Mas isso seria recompensado - pensou Nadim, com o fato de morrer sendo ele mesmo, morrer sendo quem ele decidiu ser.

- Eu escolho flutuar sobre todos vocês seus otários, gritou o rapaz ao mesmo tempo em que se lançou no ar. Seu corpo foi atingido ainda suspenso por sessenta disparos de espingarda que o fizeram se contorcer de mil e uma formas. Ao fim caiu bem no centro do muro, e assim morreu metade árabe metade judeu, embora não fosse nenhum dos dois e nem mesmo outra coisa além de ser ele mesmo.